quarta-feira, 24 de junho de 2009

Depois do fim - Ultimo ato

Histórias de viajantes

Já era tarde do dia, quando chegou a Contagem. Exausto e morrendo de sono, Gilberto procura um hotel para tomar um banho, ligar para sua casa e dormir algumas horas. Mas, antes disso, resolve ir a um banco para sacar dinheiro, com objetivo de ir até a casa de Osvaldo.

Após isso, ele pergunta sobre o endereço para alguns taxistas, que o orientam como chegar lá. É afastado do centro, mas, fácil de encontrar.

Depois de ir ao banco, não demora muito e Gilberto encontra a rua da casa de Osvaldo. Ele fita as casas, uma a uma, percebe que se trata de um bairro muito carente. Algumas crianças brincam nas calçadas e acenam para ele. No final da rua, próximo a esquina, em um portão de madeira, muro chapiscado e com o número quinhentos e vinte e dois. Era ali a casa de Osvaldo, Gilberto enfim a achou.

Em frente à casa, Gilberto estaciona sua van e desce. Bate palma uma, duas, três, algumas vezes e chama por Marília. Demora um pouco, mas ela ouvi o chamado e grita que já irá atendê-lo. Marília abre o portão e diz, educadamente que, se for um vendedor, seja lá do que, ela não teria dinheiro e, pouco menos, interesse em comprar. Gilberto sorri e diz que não estava ali para vender nada, seu intuito era pagar uma dívida. Espantada, Marília pergunta sobre essa tal dívida. Gilberto diz que tem uma dívida com Osvaldo e que prometeu pagar a dívida à ela. Ainda sem entender, Marília pergunta mais uma vez sobre a dívida, se foi um serviço ou uma venda de peças mecânicas, enfim, quando foi que Gilberto viu Osvaldo pela última vez. Gilberto então explica, fala a Marília sobre o combinado e que ele estava ali para honrar o compromisso.

Antes de terminar a explicação, Marília bate o portão em sua cara, entra para sua casa e, aos pratos, diz que a brincadeira fora de muito mau gosto. Gilberto percebe o portão semi-aberto e entra se explicando, abrindo a carteira e contando as notas. Marília enxugando as lágrimas com seu avental, fala a Gilberto que seu marido, Osvaldo, havia falecido há alguns anos.

Gilberto se desculpa e diz que entrou na casa errada, que tudo não passava de um mal entendido, havia se confundido com as casas parecidas. Nesta hora, uma menina chorando, cruza a cozinha e abraça a mãe, dizendo que sua irmã puxou seus cabelos. Quando Gilberto ouve a garota falando o nome da irmã, Jéssica e Marília a consolando, chamando-a de Rebeca, ele fica espantado. Retira o bilhete do bolso de sua camisa e confere o endereço com Marília. Gilberto, com a voz tremula, pede para Marília uma foto de seu marido. Sim, trata-se da casa de Osvaldo.

Ao entregar a foto, Marília explica que ele fora morto por assaltantes em um restaurante de estrada. Após ter recebido por um serviço prestado, dois marginais abordaram Osvaldo e pediram o dinheiro. Como são pobres e suas filhas queriam um presente de natal, Osvaldo hesitou, foi então que, numa luta com os bandidos, um deles cometeu um disparo fatal.

Gilberto observa a foto e chora ao ouvir o relato de Marília. Dá o dinheiro a ela e, mais uma vez, conta como conheceu Osvaldo. Marília chora bastante, se lamenta pela perda do marido, fala da dificuldade que passam e diz que acredita na história de Gilberto, pois, Osvaldo era mesmo muito caridoso e prestativo. Eles se abraçam e choram bastante. Gilberto vê a foto sobre a mesa e, com um semblante de felicidade, agradece.

Após um café e um longo papo, Gilberto atravessa o quintal, cruza o portão e, enxugando suas lágrimas, entra em sua van carregada de peças, malotes e experiência de vida.

Contaram-me essa história em um restaurante de estrada, próximo a Corumbá, Mato grosso do Sul. Algumas pessoas me confirmaram tudo. Disseram-me que foi o próprio Gilberto que, em outra viagem, passara ali e contou sobre este ocorrido. Porém, outras pessoas falaram que se trata, apenas, de mais uma de tantas histórias contadas por viajantes.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Depois do fim - Quarto ato

Amizade de estrada

Um dos rapazes interrompe a conversa, dizendo para Gilberto que sua viagem acabara por ali. O assalto é anunciado. Gilberto, coitado, não tinha dinheiro algum para oferecer, só tinha o dinheiro que seu chefe deu antes da viagem. Com armas em punho, os rapazes pediram calma para ele, alertando sobre as conseqüências caso reagisse. Sem hesitar, Gilberto tira o envelope e entrega aos rapazes, dizendo que era só o que poderia oferecer. Os rapazes, rindo, dizem que sabiam, pois, já tinha conferido que na van só tinha algumas peças e embrulhos. Em estado de choque, Gilberto só observa os rapazes caminhando até o Chevette e partindo pela estrada a fora.

Visivelmente abatido, Gilberto entra no restaurante e seu pedido já está posto sobre a bancada. Ele chama a garçonete e informa sobre o trágico ocorrido. Porém, antes que terminasse, um rapaz fala pra garçonete que pagará a conta. Ele bate a mão no ombro de Gilberto e diz para ficar tranqüilo. Gilberto olha para o rapaz e aceita sem excitar. Pois, nessa altura do campeonato, a fome falava mais alto. O rapaz pede uma coxinha, uma cerveja e senta ao lado de Gilberto.

Mesmo com vergonha, Gilberto agradece o gesto do rapaz e lhe conta sobre o assalto. O rapaz lhe interrompe dizendo que viu a cena, mas, não pode interferir, pois, não possui arma e, com isso, não costumava reagir a assaltos. Só reagiu uma vez pra nunca mais. Ele se apresenta, seu nome é Osvaldo, é mecânico, casado com Marília, pai de duas lindas meninas, Jessica e Rebeca. Diz que está ali, pois, se trata de um ótimo ponto para exercer sua profissão. Comenta que está familiarizado com manutenção de caminhões e que, desde muito tempo, trabalha com isso.

Passa-se duas horas, cinco refrigerantes, três cervejas, dois salgados, sete fichas para Junkie Box e alguns minutos. Gilberto e Osvaldo parecem amigos de infância. Gilberto revela sua aflição e nervosismo em ser pai, não vê a hora que isso aconteça. Porém, lamenta em ser pobre e, confessa a Osvaldo, que queria pagar ótimas escolas para o filho, convênio médico, enfim, mesmo assim se esforça para dar o melhor que puder. Osvaldo acha as declarações cômicas e familiares, brinca dizendo que já passou fome e que existe algo bom em ser pobre, pois, não se gasta muito em pasta e escovas de dente. Diz que sabe bem o que ele está sentindo, pede para Gilberto ter fé. E, é neste clima de descontração que Osvaldo acerta tudo e os dois saem do restaurante.

Gilberto quer mostrar a Osvaldo, algumas fotografias que estão na van. Eles vão até o veiculo e, então, percebem que os assaltantes furaram o pneu dianteiro do lado esquerdo do carro. Nervoso com a situação, Gilberto chuta a roda e maldiz os bandidos. Osvaldo pede por calma, pois, ele ajudaria a consertar o carro. Acredito que essa amizade repentina fora bastante salutar para Gilberto, pois, além de se oferecer para pagar o pedido no restaurante, Osvaldo também ajudara com sua van.

Após alguns minutos, o carro está pronto para seguir viagem. Gilberto agradece muito e lhe oferece uma carona. Osvaldo diz que ficaria por ali, descansaria após ter ajudado seu novo amigo. Movido pela gratidão, Gilberto lamenta por não ter dinheiro para pagar o serviço e o lanche. Osvaldo fala que o lanche já foi pago com uma ótima conversa e pela amizade de estrada, porém, pergunta pra Gilberto se ele cruzaria por Contagem. Gilberto diz que sim, que este é seu destino, Osvaldo fala que mora lá e, então, sugere que Gilberto pague pelo serviço levando o dinheiro até sua casa, pois, não sabia quando iria rever sua família. Gilberto ficou entusiasmado. Tomou logo um papel e uma caneta para anotar o endereço. Afirmou a Osvaldo que, assim que chegasse a Contagem, a primeira coisa que faria, seria entregar o dinheiro nas mãos de sua esposa.

Gilberto partiu dentro da escura noite. Chateado pelo que aconteceu, mas feliz por ter encontrado ajuda. Seu celular estava sem sinal e seu rádio não pegava. Colocou um CD para relaxar e continuou a peleja.

sábado, 13 de junho de 2009

Amigo do Jack e do Johnnie

Um dia desses, li em um cartaz uma frase, digamos, interessante. Era sobre consumo alcoólico:

"Cuide bem de seu melhor amigo. Seu fígado".


Ela, a frase, me levou a uma simples reflexão. Cheguei a comentar com um velho que, estava sentado ao meu lado esperando o ônibus:

" - Gostava do tempo em que o melhor amigo do homem era o cachorro. Eu tinha dois, mas, morreram de velhice, creio eu. Você, digo, o senhor têm cachorros?".

Ele, o velho, balançou a cabeça, negativamente, e voltou a ler uma revistinha, intitulada: "Revista Vivência".

terça-feira, 9 de junho de 2009

Depois do fim - Terceiro ato

Pedaço de pamonha

Tudo está pronto. O carro está carregado com os malotes, com as peças novas e o tanque está cheio. Gilberto apanha o endereço com seu chefe, verifica as rodas e o pneu reserva, os freios e o óleo, coloca o terço no retrovisor e confere se o guia está em baixo do banco. Antes de partir, seu chefe lhe deseja boa viagem e lhe dá um envelope com dinheiro, dizendo que uma parte dessa quantia era para o Gilberto comprar uma lembrança para sua esposa grávida e um macacão do Corinthians para seu filho que está chegando. Com a outra parte, pediu a Gilberto que trouxesse algumas garrafadas da mais pura pinga de Minas, para dar a toda chefia da empresa. Ambos caíram na gargalhada e, assim, Gilberto partiu.

O dia estava quente, Gilberto cruzava a cidade para chegar à rodovia. Carros, motos e caminhões, todos fazem parte da orquestra do trânsito, regendo a sinfonia de buzinas, palavrões e motores. Chegando à Dutra, ele resolve ligar o ar e aumentar o som do rádio. Uma canção do Tim Maia o faz lembrar seus pais e de sua infância. Já perceberam como é comum, quando estamos em uma viagem, fazermos reflexões e lembrarmos nosso passado? Creio que é por isso que fazemos analogia entre a morte e uma viagem. Como um filme de toda a vida, que passa diante de nossos olhos quando estamos partindo.

Então... Mantendo a direita, ele avista uma placa para saída a Fernão Dias. Sua viagem começa a passar certa solidão. Parece que se arrepende de ter aceitado está missão. Passa-se algumas horas, o relógio do painel marca cinco e quatorze, mas o locutor da rádio diz que é cinco e vinte e dois. Gilberto está com fome, mas só vê lanchonetes que vendem derivados de milho. Desde criança, Gilberto detesta milho.

Certa vez, quando tinha oito anos ou menos, na casa de sua tia Ana - irmã mais velha de sua mãe - Gilberto comeu escondido um pedaço de pamonha que fora encomendada pela vizinha. De longe, seu tio observava tudo, alcoolizado e enfurecido com o garoto, bateu nele até cansar seus braços gordos. O repúdio foi tanto que Gilberto vomitou todo o almoço, juntamente, com o pedaço de pamonha. Ficou um bom tempo sem comer coisas feitas com milho. Ele não contou pra ninguém e, com isso, foi levado em diversos médicos para saber a causa do menino não sentir mais vontade de comer o que mais gostava. O trauma passou com o tempo, ele come algumas coisas de milho. Porém, até hoje, em outras idas à casa de sua tia, ele fica cismado em comer lá. Mas, pamonha, ele nunca mais quis, sequer, sentir o cheiro.

Voltando a história... O céu escureceu e Gilberto resolveu dar uma parada para tomar um banho, comer algo e, se necessário, dormir um pouco. Mais adiante, ele vê uma parada para caminhões, um enorme restaurante com um pequeno posto de gasolina ao lado. Ele pára, confere para ver se a carga está intacta, trava sua van e vai ao restaurante. No trajeto, ele observa diversas garotas com vinte e poucos anos, algumas com menos, acompanhadas por velhos caminhoneiros, garrafas quebradas, pessoas desconfiadas, saindo de portas escuras, falando baixo e olhando fixamente para todos os lados com a cabeça ao léu. Ele acha estranho aquele lugar, mas como já estava dirigindo por horas, resolveu recarregar as energias fazendo uma parada.

Entrando no restaurante, ele observa algumas pessoas jantando, chão sujo, poeira, teias de aranha acumulada nos ventiladores que não funcionam e uma antiga Junkie Box tocando Jhonny Rivers. Ele pergunta para garçonete se ali era Bom sucesso ou Lavras, ela não fala nada e, somente, pergunta o que ele deseja. Sem graça, ele pede uma Coca em lata bem gelada e um lanche de pernil sem cebola.

Enquanto espera pelo pedido, Gilberto pede um café e caminha até a porta do restaurante para tomar um ar e ver o vai-e-vem da rodovia. Caminhando de um lado para o outro, ele é observado por dois rapazes que estão próximos a um velho Chevette. Ele percebe e acena, com a intenção de se familiarizar. Os rapazes respondem com um sinal de positivo, conversam entre si e caminham em direção de Gilberto.

Eles o cumprimentam e perguntam se é ele que está com a van. Gilberto responde que sim. Os rapazes comentam que perceberam que ele não era dali, que a placa era de Curitiba. Gilberto diz que a empresa é do Paraná, porém ele trabalha na unidade de São Paulo e está indo para Contagem. Sem nenhuma desconfiança, Gilberto conversa com os rapazes. Mas, mal sabe ele das intenções dos dois.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Depois do Fim - Segundo ato

Sinal da cruz

Uma casa pequena. Três ou quatro cômodos, se não me engano. Uma varanda espaçosa e um quintal nos fundos. Alguns quadros na parede. Fotos sobre a estante da sala. Na entrada, uma cortina estampada e uma música alta.

Gilberto diminui o volume do rádio e, sorrateiramente, vai à cozinha onde sua mulher está. Ela olha para trás, assim que ele cruza a porta, balançando a cortina com gomos de bambu e, com um forte abraço, ela o recebe. Um pouco apressado, Gilberto segura na mão de sua esposa, puxando-a para o quarto. Ele explica sobre a viagem repentina e pede ajuda para aprontar algumas trocas de roupas, escova de dente e toalhas limpas.

Ele vai à cozinha, toma um copo de café amargo com algumas bolachas de água e sal, corre para o banheiro para escovar os dentes e o cabelo e, ao olhar-se no espelho, chora. Fica ali por alguns minutos. Não se sabe o motivo. Nada passa por sua mente. Simplesmente, ele chora. Chora como nunca tivesse chorado. Aperta a descarga para sua esposa não ouvir seus prantos. Enxuga suas lagrimas, puxa o fôlego e sai.

Na sala, sua esposa lhe espera sentada no sofá, segurando um terço na mão direita com a bagagem entre as pernas. Gilberto senta ao lado dela e diz para não se preocupar, seria uma viagem rápida e uma ótima oportunidade para mostrar serviço aos seus superiores. Ela lhe dá o terço, faz o sinal da cruz em sua testa e lhe beija forte, sem falar nada. Gilberto sorri com o canto da boca e lhe mostra a língua. Os dois riem e ele cruza a saleta em direção a rua.